Sou professora, escritora, mãe, avó, casada com uma mulher, evangélica de berço. Quando ainda não sabia falar, minha mãe e meu pai me batizaram na Igreja Católica. Mas nunca cheguei a frequentar. Nas poucas memórias que tenho de infância antes dos dez anos de idade, alguma amiga precisava assistir aos encontros na Ireja Católica para ser crismada ou fazer a primeira comunhão e eu acabava indo como acompanhante, até lia o Catecismo. Minha mãe deixava. Mas já éramos todos evangélicos em nossa casa. Minha avó foi obreira da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) por muitos anos, tive primos e primas obreiros também, inclusive, um desses primos quase se tornou pastor da IURD, onde, aos 12 anos de idade me batizei. Pois bem, leitora voraz como sempre fui na infância, na ausência de bibliotecas em Xerém, fosse na escola ou no bairro, e na escassez financeira de minha família, não tive acesso a livros. Com isso, devorava todos os textos do Bispo Edir Macedo que chegavam às minhas mãos, como o Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios. Ainda na adolescência, sem acesso a cinema, teatro, atividades de cultura e lazer, me sentia parte de uma comunidade ao participar do Grupo Jovem da IURD. Era ali que eu me mantinha ocupada o suficiente para me afastar do mundo da criminalidade, do mundo da gravidez precoce, do mundo da morte que rondava a mim e meus amigos por volta dos nossos 13 anos. Era ali que eu ouvia conselhos da nossa tutora, a obreira Sueli, uma mulher negra e mais velha que a gente, que falava sobre sexo, drogas, cuidados com o corpo, a importância dos estudos. Era ali que eu percebia que minha letra desenhada e minhas habilidades manuais eram úteis, quando eu fazia convites para trazer outros adolescentes (tão miseráveis e sem esperança) como eu para a igreja. Era a igreja o lugar que me possibilitava sonhar com um futuro melhor. No entanto, mesmo com o senso de comunidade e de pertencimento, me sentindo inteligente, com letra bonita, nunca ouvia ninguém falar sobre a escravidão, sobre o quanto aquela desigualdade social em que vivíamos tinha a ver com o racismo que fundou esse país. Era como se bastasse que orássemos e nos esforçassemos e tudo de bom poderia acontecer. Xerém tinha, e ainda tem, centenas de igrejas evangélicas. Ao contrário da Zona Sul do Rio, área “nobre”, onde quase não havia igrejas, mas se multiplicavam cinemas, livrarias, centros culturais, festivais. Pois bem. Fui forjada na igreja evangélica. Não aprendi sobre racismo, mas aprendi sobre solidariedade, sobre comunhão, sobre ajudar o próximo, saber perdoar. Eram as igrejas evangélicas que doavam cestas básicas para matar nossa fome ainda na infância, que visitavam os filhos de nossas vizinhas nas prisões; era uma igreja evangélica que estava construindo a casa da minha mãe quando ela morreu de câncer. Não foi um partido político, não foi a universidade, não foi nenhum movimento social, foi a igreja evangélica. E essas pessoas foram cooptadas pela pauta do conservadorismo e do fundamentalismo religioso que passou a tratar cada um desses itens de bondade e partilha como uma barganha. Te dou isso, vote naquilo. O que não acontecia na nossa realidade na década de 80 e 90. Já adulta, acadêmica, após barrar o meu preconceito e medo e visitar diversos terreiros de candomblé, de tambor de mina, de umbanda, jogar búzios para descobrir que sou filha de Obá, a maior guerreira entre as orixás femininas, me afastei cada vez mais da Igreja protestante. No entanto, é com Deus que falo nos momentos de dor; é para ele que oro quando preciso de uma direção; é a Bíblia um dos meus livros que leio quando me sinto um pouco perdida; e são os louvores, minhas canções preferidas para começar o dia bem quando me faltam forças e penso em desistir.
Como tenho certeza de que Deus cuida de mim, no início do ano, Gabi, uma amiga que conhece um bocado dessa minha trajetória evangê, como diz a debochada da Vitória (minha filha), me mandou a divulgação de um evento que aconteceria em São Paulo, em junho de 2025. O evento se chamava “Enegrecer”, estava sendo organizado pelo Movimento Negro Evangélico, e reuniria na maior capital do país, pessoas interessadas em acompnhar de perto os debates sobre o protestantismo e o antirracismo. Me lembrei que, após entrar na universidade, e me afastar ainda mais das igrejas, me incomodava o quanto a igreja evangélica do Brasil, ao contrário dos EUA, nunca havia participado da luta antirracista. Martin Luther King era pastor, vocês se lembram? Animadíssima com a possibilidade de estar presente naquela Conferência, me inscrevi e aguardei ansiosamente pelo dia. E ele chegou. A Conferência Enegrecer aconteceu entre 18 e 21 de junho de 2025, na Igreja Batista da Água Branca (IBAB), que fica localizada na Barra Funda, e que tem como pastor atualmente, Ed René Kivitz. O pastor Kivitz e a IBAB já eram parte de meus dias, pois assisto muito a seus vídeos. Ele sempre traz um olhar progressista para muitos temas espinhosos para a igreja.
Nos dias da Conferência, ouvi pastores e pastoras (negros e negras) de Cuba, do Brasil, da África do Sul, do pacífico colombiano, dos Estados Unidos da América, mas também professores(as) de universidades federais que têm se dedicado a pensar temas como a escravidão e a igreja, a sexualidade e a igreja inclusiva. Ouvi citações de Frantz Fanon, de Lélia Gonzalez. Alias, falando de Lélia, a própria filósofa e socióloga brasileira deu um depoimento sobre sua relação com a igreja, in-tensa, de muita crítica, mas com certo reconhecimento. Em um dos seus textos presente no livro Por um feminismo afro-latino-americano, a autora diz: “E eu, enquanto fundadora do Movimento Negro Unificado, me recordo que a Igreja Católica também nunca nos viu com bons olhos, inclusive porque éramos o criouléu de esquerda, o criouléu que estava querendo articular questões de raça e classe, como o caso do Movimento Negro Unificado. Não tínhamos muita guarida na Igreja Católica. Fomos tê-la na igreja metodista, por exemplo, para a realização do nosso I Congresso Nacional em 1979, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro” (Gonzalez, 2020, p. 240).
Ainda no evento, fiquei encantada com a quantidade de livros teóricos que têm sido produzidos sobre a teologia negra, a teologia feminista negra e que nunca tinha ouvido falar. Também descobri que Ruah, a quem muitos se referiam, é um substativo feminino em hebraico, que pode ser traduzido como “espírita santa”; que não há problema em me referir a Jesus como Jesus de Negro de Nazaré; que tem lutas sendo travadas dentro das próprias igrejas que, muitas vezes, sendo brancas, em sua maioria, estão sendo tensionadas para debater estes temas atuais. Me conectei com muitas outras pessoas parecidas comigo que, “desigrejadas”, expressão utilizada por alguns participantes, casadas com pessoas do mesmo sexo, racializadas, não se veem como parte de nenhum outro modo de estar no mundo que não seja como parte de uma comunidade cristã. Mesmo com as dores e contradições que isso implique, foi ali, naquele lugar, na presença de Ruah, que chorei como criança ao ouvir o primeiro hino do evento, “Tributo a Iehovah”, do pastor Adhemar de Campos, um louvor da minha infância, que cresci cantando e dançando como Davi. Voltei para casa pensando que só poderia mesmo ter sido forjada por duas mães, Obá, que não me desampara, e Ruah, que me mantém de pé. “Eu sou grata por tudo que tenho e que sou…”.